Cansaço e o cansaço de estar cansado.

Matheus Morais Inácio
5 min readJul 26, 2020

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Outros diários da peste. 4
25/07. Fluxos de consciência dentro do ano de 2020. O ano da pandemia.

adam lupton.

Eu não tenho a mínima ideia de como falar de 2020. Ter o que falar, todo mundo tem, mas “como” é uma parada muito mais complicada.

Quem está vivo está presenciando o meio do ano que nem foi vivo. O último respiro desse ano fora o carnaval e, sem deixar sequer aproveitar a ressaca desse fenômeno — que parece ter sido em outra vida e, por um lado, foi — acabou ali. Desde então, os sentimentos cotidianos podem ser resumidos em poucas palavras compactas, ainda que as poucas palavras não contemplem o tamanho do sentimento do mundo que carregamos.

Agora, especialmente agora, pelo menos pra mim, consigo, sem pestanejar, assumir que minha resiliência anda falha e, consequentemente, assumo que estou cansado, mas esse cansaço não é atual, é amargurado e arrastado desde, sei lá, a primeira semana? Talvez o primeiro mês? Difícil falar sobre qualquer cronologia num ano que sequer existiu direito e tem mais alguns meses pra inexistir. Não me entenda negligente a todos os acontecimentos que pra além da pandemia existiram. Houveram muitas coisas, mas, meu sentimento é de ter sido um expectador, um observador não participante, um impotente frente a tudo isso, ainda que eu participasse de alguma forma. Vide, sou eu um homem (cis) preto vivendo o Brasil nesse ano, eu vi, vejo e vou ver muita merda pra além da montanha crescente de corpos advindos pelo COVID-19. Todo dia tem uma merda. Todo dia é um espetáculo de horrores biológico, político, social, ético e todas as variantes que tentam demarcar ou denotar algum tipo de ordenamento da vida. Ano em que a morte teve muito mais protagonismo que a vida.

Infelizmente, esse texto é sustentado por fios desfiados de esperança. Momentâneo, mas ainda sim, um quase-desesperançoso, ainda que não-mórbido. Abandonei a morbidez nos meus anos passados.

Estou cansado de estar cansado. Fazem inúmeros dias que vivo um mesmo tipo de dia, com migalhas de vida. Eu tinha medo d’uma finitude de prazer que, como premonição, via lá no fundo, n’algum fundo, que haveria um enjoo desse balançar estável que é viver este ano inexistente.

Necessariamente imposto que havia de se ficar em casa para não — possivelmente — morrer, passaram-se os dias em dúvida de tudo, passou-se o primeiro mês na ansiedade de sanar, passou-se o segundo mês na criatividade para expandir o Mundo-Casa, passou-se o terceiro em frustrações raivosas e raivas frustrantes, passou-se o quarto mês em apatia e fadiga, passa-se o quinto mês puro desprazer, tudo isso acompanhado de cansaço. Exausto. Exaurido. Cansativo. Cada um que não se equilibra no topo da pirâmide burguesa — e não direciono nenhuma palavra empática a esses, muito pelo contrário, sinto repulsa — teve, tem e terá que carregar um Mundo nas costas. Todo dia. Ouso dizer que maior que antes, ainda que possam haver discordâncias e concordâncias.

Eu que sempre idolatrei a vagabundagem, sou essencialmente vagabundo-nato, mas me vejo me movimentando quase que só pelo meu trabalho que, por via de regra, em sua base, é sobre ajudar pessoas, usando dos termos comuns — e no final das contas, bem didáticos — sobre ajudar a cabeça das pessoas e o ethos disso me anima, pois, no final das contas, acaba ajudando a minha cabeça também, devido a equalidade nas bases dos contextos — de muitas diferenças pra além das bases — consigo sentir um pertencimento, ainda que em relação psicólogo-paciente, mas é um pertencimento que não necessariamente é sobre acolhimento, mas, pelo — literalmente — menos “tamo na mesma merda, né?”

Mas ainda sim é um dever. Uma dívida herdada por esse sistema genocida de merda. Quem dera a porra do vírus fosse, de fato, o maior dos problemas.

Claro que conheço meus prazeres. Claro que tenho pessoas que amo e que falo e que quero. Mas é um ano de impotência. O Mundo é grande demais pra caber dentro de uma propriedade privada… E, pelo amor de deus, que se foda a propriedade privada. O que fazer quando esse Mundo-Casa vira uma sala de espera. Espera essa que nem sabe se por uma vacina salvadora ou um fim do mundo lá fora? Pra além da francesía da frase: São tempos inimaginavelmente difíceis para os sonhadores.

Nunca foi tão difícil sustentar os sonhos.

É de se ver num limbo quando os prazeres se tornam ocupadores-de-cabeça quando eram para ser aquilo que são: Prazeres. É um sentimento que não imagino que alguém imaginava sentir.

Pra eu que amo cinema, assistir um filme se tornou necessidade. Pra eu que amo literatura, ler um livro se tornou necessidade. Pra eu que amo jogos, jogar algo se tornou necessidade. Pra eu que amo movimento, fazer exercícios se tornou necessidade. Pra eu que amo o sol, vitamina D se tornou necessidade. Pra eu que amo sexo, masturbação se tornou necessidade. Pra eu que amo rua, ter — mais — medo da rua se tornou necessidade. Eu tô exaurido da necessidade. Necessidade não é vontade. Necessidade é mantenimento. Necessidade é estar vivo. Vontade é movimento. Vontade é prazer. Vontade é viver.

É difícil compreender qualquer parte do que se vive agora. Qualquer aprofundamento é um afogo da sanidade. Eu não falo isso num sentido de desterritorialização do real, pelo contrário, falo isso por um afogamento no hiperreal. O hiperreal é mais absurdo que o esquizoreal.

Um exemplo prático: Se alguém lhe mostrasse uma foto do presidente de uma das nações mais afetadas por um vírus mortal que se espalha pelo ar, tal qual o mesmo está também infectado com o vírus, exibe uma caixa de um remédio que não funciona contra o vírus, como se fosse o Simba de Rei Leão, para pessoas que não creem que o remédio não funciona, apesar de todas as provas que não funciona, e até exibe isso para uma Ema (sim, o animal), você acreditaria?

É bizarro compreender a realidade como mais absurda que qualquer loucura ou fantasia e ter de lidar com isso, agora esporrada na cara de, literalmente, todo o mundo. É necessário segurar firme o sentido das coisas momento, de verdade.

Com essas palavras vomitadas, consigo, enfim, desentupir as gargantas de minhas mãos para escrever, sendo essa a arte que me salva, que estava cansada também, mas hoje resolveu dar as caras. É com isso que respiro, sem muita procura de um sentimento porquê há um descompromisso com o sentido ou um compromisso firme demais com o real. É difícil compreender qualquer coisa. Parece que a linguagem exibe de forma explicita suas falhas, pois, não consegue contemplar muito do espirito desses tempos contemporâneos. Clamo pra que todos consigam se esvaziar desse cansaço de alguma forma, pois, sei que há muito engasgo na gente, sem que seja morrer, pois, morrer, agora, faz muito menos sentido agora. Esvaziar pra que a tal vida vivente submersa em cansaço, consiga pelo menos respirar um pouco.

Ora, me dê um pouco de possível, se não sufoco, dizia Deleuze e sempre hei de relembrar.

Sejamos prudentes e atentos a nós mesmos. Sejamos cuidadosos, sabe? Sejamos cuidadosos nessa incessante dança pelo possível que, com um forçado otimismo, parece estar na metade do caminho.

Fé pra tudo. Ainda espero pela alegria que virá.

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